Excertos

Despaís (2013): excerto

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[barqueiro]

"O mar como terra. As ondas, montanhas. O céu o sol. As falésias de Sagres, estranhamente habitadas por uma dupla secura.

A areia e a beira-mar são agora uma massa informe de madeiras e plásticos, jangadas de matéria morta, subitamente ressuscitada como uma espécie de salvação. Esses instrumentos de um presente confiscado, símbolos dolorosos de um passado gloriosamente burguês, ouropel europeu; e esses homens, e mulheres, e crianças, e velhos, todos restos feitos pessoas e não o (seu) contrário, agora convertidos em naus, em marinheiros, em duplos quinhentistas passados de futuro, ultra-passados de futuro.

Levantava o mar as barcaças e as gentes. Subia-as, como faz às montanhas de areia e lixo, e testando-as para a sua nova natureza de água. As naus, Crísias, como lhes chamavam.

Uma criança subia para a primeira Crísia. Correu pelos seus trezentos metros de extensão. A multidão ouviu os seus passos gargalhadas. Os reflexos do Sol no mar e os flashes dos fotógrafos quebravam de luz os olhos destes primeiros marinheiros. Um homem avançou, então; ridícula agora a gabardine a molhar-se na água salgada do Algarve; outro, alto, sueco, acompanha-o, de máquina em punho. Sorri, pensando nos seus antepassados vikings noutros muitos mares. Acompanha o microfone do homem de gabardina, que se aproxima da primeira criança e lhe pergunta o nome. A criança, um rapaz de comprido cabelo preto e sardas desmesuradas, responde mais alto que as ondas e o bater do mar nos improvisados barcos:

- Afonso.

O repórter volta-se para a câmara, gabardine e microfone, anuncia a curiosidade de a criança, "primeiro marinheiro", se chamar como o primeiro rei daquele «país suicidado» – como o Paris News escrevera na sua manchete no dia anterior.

Nenhuma das milhares de pessoas que sobem, mãos nuas, quase sem pertences, para as Crísias, se importam com o repórter, as câmaras, a multidão de seres que formigam à sua volta. Sobem para aquelas carcaças agora feitas casas, os zincos ferrugentos parecendo brilhantes ao contraste entre água e sol, as caixas de fruta empilhada no centro destas naus, no seu cheiro doce e fresco cortado pelo odor salino do mar. Negras bandeiras com um centro dourado, uma esfera, suspendem-se entre o céu e o mar, entre uma identidade de terra e de água.

Começa o mar a levá-las, barcaças básicas de construção babélica. O mar e os últimos homens, que puxam as naus para longe da costa, movimentos de mãos e pernas dos homens e do mar, uma dança de morte, concentrada, condensada, patética e branca na espuma definitiva das ondas.

Helicópteros sobrevoam o ar, criam pequenas zonas de espuma sobre o tecido de lápide das ondas, desmantelam as paisagens à procura das gentes. Todas as televisões informam de um país abandonado, vendido, caótico; do seu povo nenhum, agora, nómada marítimo, de quem praticamente ninguém ficou na sua terra de milhares de anos.

Das costas do Algarve, do fim da terra do fim, trágicos duplos quinhentistas abrem velhas novas ondas. Fazem do mar a terra. Da ocidental praia, olham para a terra que deixaram. Rostos gastos, secos não ainda do sal que as crestará pela terra do mar afora. E, sem armas, os desbaronados confundem-se no mar; e, desaparecendo-se, progridem."

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